Páginas

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Rotas Por Ricardo Lugris

O sol da tarde chilena naquele último dia do ano brilhava com intensidade em nossos olhos através das viseiras de nossos capacetes.

Tudo se passou muito rapidamente, com uma simplicidade desconcertante:
Em uma ampla curva, onde o cascalho mais grosso tinha sido empurrado para a sua tangente, Bernard percebe um homem a cavalo.
O animal, assustado com a passagem da primeira moto, corcoveia.

Isso é o suficiente para que Bernard se distraia por uma fração de segundo na entrada da curva.
Sua moto, uma GS 1100 pega a faixa de cascalho grosso e perde aderência.
Ele, assustado, faz o erro mais fundamental em uma estrada de rípio: freia com vigor.

A GS derrapa, se atravessa, meu parceiro vai ao chão de frente, violentamente.


A moto passa rolando sobre as costas de Bernard e vai se deter em um canal lateral a alguns metros da estrada.

Eu, que venho em minha GSA 1150 logo atrás, assisto ao breve porém, angustiante espetáculo desde o camarote altamente improvisado e instável de minha moto.

Também estou entrando na curva e reduzo as marchas para poder para o mais rapidamente possível..
Quando passo, de canto de olho vejo Bernard imóvel, de bruços com a cara enterrada no chão.

Angustiado, consigo parar minha GSA a uns 15 metros mais à frente.

Christelle, em sua GS 650 Dakar que andava na frente, tinha continuado por uns 200 metros até que percebeu que seu marido não a seguia. Enquanto corro até Bernard, digo a ela que traga o kit médico. Bernard já se erguia com o rosto bastante ensangüentado.

Por sorte, a moto ao rolar sobre ele não o atingiu nas costas e sim, no capacete.

Neste momento, meses de preparação, organização, planejamento no envio das três motos da Europa para o Chile se esvaíam na rapidez de um instante de desatenção.

Durante semanas, organizamos esta viagem pela América do Sul, meu continente, com Bernard e Christelle, um casal de amigos franceses, proprietários de uma concessionária BMW em Chantilly, onde moro.

Cedo, nesse mesmo dia, Bernard tinha removido a parte de proteção maxilar de seu capacete, pois preferia sentir o prazer do vento na cara viajando com um Jet. Fiz a observação de que poderia ser perigoso. Agora, ele estava infelizmente comprovando esse risco.

A ausência de proteção no rosto causou-lhe ferimentos generalizados na face e, sobretudo no nariz que parecia fraturado


Um dos primeiros a se deter para assistir era um médico alemão que imediatamente diagnosticou que os ferimentos de Bernard eram de pouca gravidade, apesar da aparente fratura do nariz.
Feito o curativo, retiramos toda a bagagem da GS acidentada para poder levantá-la da fossa onde se encontrava praticamente enterrada em lama e água.
As malas tinham sofrido um pouco, a “top case” tinha-se desprendido da moto. Fora isso, os danos eram mínimos, considerando a violência da queda.

Fui retirar minha moto que tinha abandonado, na pressa, sem muito cuidado, à saída da curva.
Na pressa de ajudar Bernard, deixei minha moto em superfície irregular, com ângulo pronunciado para a direita.
Ao montar na minha GSA, ela tombou para a direita, lado onde fica impossível segurá-la.


Pareceu-me totalmente ridículo que com meu parceiro acidentado, eu bestamente, fizesse tombar minha moto para acrescentar mais problemas como se aqueles que já tínhamos não fossem suficientes.
Levantamos minha moto com um pisca e o farol de neblina direito quebrados.
Um episódio curioso foi quando um ônibus deteve-se e o motorista desceu com um rolo de algodão e água-oxigenada.

Christelle começou a gritar, dizendo- me que ele iria passar álcool no rosto de Bernard.

Tratei de tranqüilizá-la, explicando do que se tratava.
Toda essa situação mexeu muito com a esposa de Bernard.
Ela já tinha tido problemas anteriores no ripio e seu medo da estrada de terra vinha aumentando a cada dia nesta viagem.

Vários carros se detiveram para oferecer ajuda. Agradecemos.
Não pude deixar de notar como é bonita a solidariedade nestas paragens remotas.
Ela bem que poderia ser um produto de exportação para os países europeus, pensei.
Terminados os reparos mais urgentes, seguimos viagem, não sem antes mostrar nosso apreço a todos aqueles que tinham nos ajudado, seja levantando as motos, inclusive a minha, e com os curativos.
Bernard seguiu na frente fazendo claramente um grande esforço para não se deixar afetar pelo medo após a queda.

Prova de sangue motociclista.

Coloquei-me logo em seguida para deixá-lo rodar em seu próprio ritmo enquanto recuperava sua confiança e deixava dissipar a carga de adrenalina. Dessa forma, eu poderia também observar seu comportamento e concentração em uma superfície de cascalho bastante instável.

Preocupado com a evolução de Bernard na estrada e absorvido por minha própria condução, esqueci-me completamente de Christelle. Nossa idéia era de fazer uma pausa de abastecimento em Puerto Rio Tranquilo, um lindo vilarejo com ares pitorescos junto ao imponente Lago General Carrera e rodeado de montanhas com seus cumes gelados.

Mal sabia eu que ali passaríamos nossa noite de Ano-Novo e que esse seria o ponto mais ao Sul que chegaríamos nessa viagem pela Argentina e Chile.

Uns vinte quilômetros após o local do acidente e uns cinco antes de Rio Tranquilo, perdemos de vista a 650 GS Dakar de Christelle.

Após a queda de Bernard, percebi que ela avançava com velocidade muito reduzida, sem muita confiança na aderência de seus pneus.

Chegamos, a Rio Tranquilo com muito vento em uma irritante estrada de ripio solto. Aquele que faz dançar a moto... Fomos, Bernard e eu, diretamente ao Posto de Gasolina para abastecer e comprar uma garrafa de água, pois eu morria de sede.

Quando volto, meu parceiro me pergunta se tinha visto a Christelle. Será que ela ficou tirando fotos? Pergunta ele. Entreguei-lhe a garrafa de água. (ele parecia precisar muito mais dela do que eu) e disse que iria procurá-la.

Minha apreensão foi aumentando à medida que meu odômetro mostrava quilômetros em sucessão e não via a GS 650 Dakar.
A apenas umas dezenas de metros de onde tinha visto minha amiga francesa pela última vez, sobre uma ponte, encontrei-a com o guidão e a dianteira de sua moto completamente encaixada na grade de ferro de proteção da ponte.

Disse-me que tinha se assustado com a passagem de uma camioneta e tinha errado a saída da curva.
Perguntei se tinha se machucado.
Disse que não, mas sua moto tinha rompido todos os cabos elétricos, arranque, luzes e painel.
A polia que serve para puxar o cabo do acelerador no punho tinha-se pulverizado em vários pedaços.

Parei um carro que passava na direção da vila e pedi ao motorista que avisasse Bernard no posto de gasolina que Christelle estava bem, mas que sua moto estava em pane.
Bernard chegou alguns minutos depois. Não entendeu bem a mensagem dada pelo motorista em espanhol e por via das dúvidas, decidiu vir até nós.

Apesar do inchaço de seu rosto que mostrava os dois olhos roxos, e que lhe dava um aspecto um tanto quanto engraçado de um graxain, além de sua evidente dor pelo corpo todo, pôs-se a trabalhar na moto de Christelle com seu costumeiro bom humor e a técnica de um grande mecânico de motocicletas.

Consertou rapidamente os cabos, recuperando o starter e as luzes. Nos dedicamos, então a procurar pelo chão os pedaços da polia. Encontramos quatro. Faltou-nos um. Aqui a coisa se complicou.
Dado o stress habitual no funcionamento dessa peça, não acreditávamos que com cola pudéssemos recuperá-la.
Com um “tie rap” Bernard improvisou uma argola que permitiria a Christelle de puxar diretamente o cabo do acelerador e isso nos daria a possibilidade de percorrer os quinze quilômetros até a vila.
Rio Tranquilo, como seu nome bem indica, é um aprazível vilarejo no meio onde vivem não mais do que 750 almas.
Junto ao Posto de Gasolina, conseguimos alugar uma confortável cabana com dois dormitórios e uma bem instalada cozinha.

Iríamos passar nossa noite de Ano-Novo nesse lugar.

O moral estava muito baixo. Christelle estava psicologicamente arrasada. A visão de seu marido no chão a bloqueou totalmente e ela dizia não ser capaz de continuar pilotando sua moto no rípio.
Além do mais, sua moto, bem como a GS 1100 de Bernard, tinha sérios problemas técnicos.

Como iríamos resolver o problema do acelerador da Dakar de Christelle?
Decidi que o melhor seria esquecermos das motos por algumas horas e concentrar-nos em nossa celebração de ano-novo.

Fomos juntos até um pequeno armazém, o único do lugar, para verificar o que poderíamos preparar para nosso jantar de fim de ano.
Uma garrafa de champanha tinha viajado na moto de Bernard desde a França e sobrevivera milagrosamente ao acidente.
Outra garrafa viajava comigo para ser consumida quando chegássemos a Ushuaia.
As possibilidades naquele pequeno armazém de vilarejo não eram muitas.

Para melhorar o astral de todos, dentro do que se oferecia naquele pequeno lugar, decidi preparar um frango ao molho de alho e limão, uma receita marroquina que acreditava conhecer de memória.
Disse aos meus amigos franceses que esquecêssemos as motos por aquela noite.

O fim de tarde chegava bonito, com nossa cabana de frente para o lago e um pôr-do-sol maravilhoso.

Bernard, apesar de machucado e com dores em todo o corpo, preferiu se ocupar de sua moto.
O pára-cilindros estava completamente retorcido com o impacto da queda e batia no “telelever” da suspensão.

Enquanto fazia minhas compras, comentei com o dono do armazém o por quê de nossa presença em Rio Tranquilo e de nossa estada um tanto quanto “forçada”, naquele adorável lugar.
Juan, como se chamava o dono do boteco, escutou atentamente o que eu lhe contava e, ao final de minha explicação, pediu para ver a moto.
Veio até nossa cabana e, sob o olhar desconfiado dos Franceses, analisou a situação da Dakar.
Disse-me em seguida que poderia inventar algo para tentar solucionar o problema e fazer a moto ser capaz de rodar, apesar de seu mecanismo de acelerador estar completamente destruído.
- Sabe moço, em Rio Tranquilo estamos a muitos quilômetros de um lugar com possibilidades.
Passamos isolados todos os invernos e, já que nossos recursos são poucos, precisamos, sobretudo ser criativos.

Consultei Bernard sobre a possibilidade de ter o dono do armazém fuçando na moto de Christelle e ele, mecânico e dono de concessão BMW, não pareceu muito animado com a idéia.
Argumentei que, de qualquer forma, não teríamos nada a perder, estávamos ferrados mesmo!
Disse a Juan Boteco que ficasse a vontade para inventar o que ele achasse mais conveniente.
Confesso que eu não acreditava que o discurso de Juan Boteco fosse se transformar em ação.
Desde a cozinha da cabana, enquanto cozinhava nosso jantar de fim de ano, eu observava as idas e vindas de Juan.

Vinha, estudava a moto, media e voltava ao seu galpão. Depois de algumas travessias do pátio que separava o armazém da cabana, fiquei curioso e resolvi visitar sua “oficina” para ver os recursos que ele poderia ter ali.
O que encontrei foi a maior concentração de quinquilharias e ferro-velho que jamais imaginei em minha vida.
Caixas com parafusos e pregos enferrujados, arruelas, porcas, pinos, eixos, latas, etc. (Nunca o etcetera foi tão bem aplicado em um texto.).
Quanto a ferramentas, Juan Boteco parecia estar bem equipado. Até uma multi-ferramenta Demel estava ali, à sua disposição.

Nesse momento, vi que ele falava sério quanto à sua disposição de encontrar uma solução para nosso problema.
Disse a ele que traria a Dakar para a porta de sua oficina para que ele não tivesse que continuar a fazer as idas e vindas.
Trouxe a moto e fui me ocupar de meu jantar. Deixei-o concentrado em “bolar” um mecanismo que permitisse acelerar decentemente a GS 650.
Já que o astral não estava nada bom, comprei uma garrafa de Pisco Chileno e fiz para nós um “pisco sauer”, uma espécie de caipirinha à chilena para levantar o moral de meus companheiros.
Afinal, estávamos a poucas horas do final do ano, em um lugar lindíssimo e, apesar das dificuldades, era sempre um privilégio estar ali.

Quando saí para levar a bebida a Bernard, observei que ele não se encontrava nada bem emocionalmente.
Ambos, Christelle e Bernard perceberam que não poderiam continuar avançando em direção ao sul da Patagônia em estradas de terra e cascalho, sobretudo pela Ruta 40.
Bernard disse-me que lamentava enormemente, pois eles estariam irremediavelmente comprometendo minha viagem e meus planos de chegar a Ushuaia.

Voltei a cuidar de nosso jantar para não pensar muito no assunto e para não transparecer minha enorme frustração e, sobretudo para evitar correr o risco de descarregá-la em meus amigos, já individualmente abalados com os acontecimentos daquele dia e seus desdobramentos.
A verdade é que nenhum dos dois tinha condições técnicas de percorrer as estradas de terra e rípio por falta de experiência nesse tipo de superfície.
São ambos bons motociclistas, mas nunca saíram do asfalto. Na Europa, onde eles pilotaram por tantos anos, as estradas de terra são praticamente inexistentes.

A responsabilidade por ter negligenciado este aspecto tão importante, quando os convidei para se juntarem a mim na América do Sul, no que seria a viagem de meus sonhos, é totalmente minha.
Nessas considerações que povoavam meus pensamentos enquanto picava cebola, descascava alho, espremia limões e me dedicava febrilmente ao que eu esperava ser um bom jantar de ano-novo, esqueci-me completamente de nosso assessor para assuntos técnicos aleatórios, o Juan, híbrido de dono de boteco e engenheiro “honoris causa”.

Fui dar uma espiada e ele parecia ter encontrado uma solução bastante razoável para o problema da Dakar.

Enquanto isso, para se ocupar, Bernard tinha desmontado completamente sua moto e, utilizando um martelo, colocava o protetor dos cilindros de volta à sua posição original.
Vendo-o martelar daquele jeito, pensei que deveria ser uma boa forma de descarregar sua frustração.
Meu jantar progredia com um aroma convidativo. Consegui até um punhado de coentro fresco que daria o toque final ao meu frango marroquino preparado nos confins da Patagônia chilena.
A proprietária da cabana que estávamos ocupando, com sua habitual hospitalidade sulina veio perguntar se precisávamos de algo mais. Perguntei se ela teria vinho para vender.

Trouxe-nos duas garrafas de bom vinho tinto Chileno. De presente!
Nossa tristeza e frustração em não poder continuar rumo sul não nos impediu de apreciar o estupendo pôr do sol que, como para nos consolar um pouco, derramava sua luz horizontal sobre as janelas de nossa cabana.

Juan, nosso mecânico improvisado, veio nos chamar com um sorriso orgulhoso nos lábios. Tinha terminado.

Aproveitando a rosca de fixação da caixa de controle da partida e acelerador, parafusou uma peça de metal com uns seis cm de comprimento. Na extremidade dessa peça ele colocou o cabo do acelerador.
Com dois “ti-raps” fixou a outra extremidade na base do punho do acelerador.
Pediu-me que testasse a moto.

Quando girasse o punho do acelerador no sentido anti-horário, o punho puxa a alavanca que ele instalou, esta, por sua vez, puxa o cabo do acelerador e o resultado é um sistema rudimentar que Christelle acabaria usando, sem falha, até o final da viagem, quinze dias depois.
Juan tinha trabalhado durante quase três horas.
Eram 21 h e ele tinha deixado de estar com sua família nessa noite de confraternização para nos ajudar. Não quis que pagássemos.

Convenci os franceses a deixar 100 dólares em um envelope para os seus filhos como presente de Reis Magos.
O acelerador inventado por Juan não teria problemas no asfalto, mas não serviria para o rípio por falta de precisão.
Isso, associado ao enorme bloqueio psicológico de Christelle, dava o “coup de grace” aos planos de chegar de moto até Ushuaia.

Meus amigos não falavam inglês ou espanhol. Não poderia deixá-los ali para continuar a viagem em solo. O problema imediato a ser resolvido (tudo isso enquanto meu jantar cozinhava), seria encontrar um meio de levar a Dakar até o asfalto mais próximo sem que Christelle tivesse que pilotar na terra.
Dali, ela poderia continuar a viagem conosco sem o risco permanente do rípio.

Conseguimos uma camionete de propriedade de Camilo, um gentil morador de Rio Tranquilo que aceitaria sacrificar o seu feriado de 1º. de Janeiro para fazer a viagem de 400 km até Rio Mayo, na Argentina, pela modesta quantia de 250 dólares, mais combustível.

De Rio Mayo, retomaríamos nossa viagem seguindo para Comodoro Rivadávia e, em seguida, para o Norte aonde iríamos ao Uruguai e ao Brasil, voltando para Santiago.

Nosso jantar, relativamente cedo para um dia 31 de Dezembro, ficou delicioso.
Nosso moral melhorou bastante e, às 21hs decidimos declarar que já era meia noite na França e abrimos a garrafa de champanhe sobrevivente da queda de Bernard.

O casal de franceses, exaustos, estressados e doloridos foi dormir cedo e eu peguei o que restava da garrafa de champanhe e fui sentar-me fora, em frente ao lago, junto minha fiel GSA para curtir alguns momentos de reflexão em uma merecida e esperada privacidade.
Que bonitos são os Andes em uma noite de lua! Quem disse que estou sozinho?

Acordamos cedo no primeiro dia do ano. Mais descansados, motivados e animados, nos preparamos para deixar a cabana que nos abrigou para tão singular noite de fim de ano. Camilo Camionete já nos esperava para carregar a Dakar.

Deixamos Rio Tranquilo pela primeira vez viajando para o norte. Precisaríamos retornar perto de 120 km pela mesma estrada em que tínhamos chegado.

Não consigo descrever minha tristeza em ter que fazer o caminho de volta. Christelle viajava na pick up. Bernard e eu, em nossas respectivas motos.

Os efeitos do golpe recebido no dia anterior eram acusados por Bernard. Seu nariz, fraturado, tinha inchado enormemente e seus dois olhos tinham hematomas que lhe davam um ar completamente irreal e ameaçador.

Era como se ele tivesse saído de uma grande briga de bar.
Disse-me que seu corpo doía em função do impacto com o planeta.
Notei-o muito inseguro ao retomar o rípio e deixei-o, neste caso, totalmente à vontade para poder encontrar seu próprio ritmo e velocidade.

Mais uma vez, via passear diante de nossos olhos aquelas montanhas que tanto admiramos no dia anterior.

Eu sabia que uma vez passada a fronteira Argentina, as montanhas cederiam lugar a planícies Patagônicas

Cruzamos a fronteira em Balmaceda. Vilarejo com ares de fim de mundo percebemos que nossas motos não tinham sido abastecidas desde o dia anterior. Perguntamos no quartel de Carabineros onde poderíamos conseguir um pouco de gasolina para as motos. Gentilmente, o oficial de polícia informou que o posto de gasolina mais próximo estava em Rio Tranquilo, a 120 km dali. Exatamente de onde vínhamos... Eu sorri, agradeci e estava pronto a me dar um tiro na cabeça se conseguisse roubar o seu revólver, quando ele completou que se estivéssemos dispostos a pagar mais caro, ele poderia conseguir uns trinta litros com sua cunhada que normalmente armazenava gasolina em sua casa.

A opção da cunhada não tinha preço!

Abastecemos as duas GS e fiquei satisfeito não só por conseguir a gasolina, mas, sobretudo, por não ter sido obrigado a dar um beijinho na cunhada do carabineiro.

O método de abastecimento era na base da mangueira e a cada vez que ela enchia o galão de plástico para, através de um funil, colocar no tanque da moto, ela enchia sua boca de gasolina e cuspia no chão... Bravo homem, o irmão do carabineiro. Espero que ele não tenha o hábito de fumar.

Com as motos devidamente abastecidas, partimos para o posto de fronteira onde novamente faríamos os trâmites de Imigração e Alfândega.

Acho engraçadíssimo que, como em qualquer fronteira, o esporte local favorito é falar mal do pessoal do outro lado.

Os chilenos, sem problema algum, anunciaram que teríamos dificuldades em declarar a moto que se encontrava na carroceria da camionete de Camilo.

Lembraram que fizéssemos a declaração da moto independentemente da camionete, pois esta última voltaria vazia para o Chile.

Do lado Argentino, a coisa engrossou. Os agentes “hermanos” não queriam aceitar o fato que a pick up de Camilo voltasse sem a moto para o Chile. A moto veio no caminhão, volta no caminhão.

Expliquei aos argentinos que a moto tinha sofrido avarias em uma queda e que, no Chile, país muito mais “atrasado” do que a Argentina, não haveria condições técnicas para repará-la.

Precisávamos levar a moto a uma cidade moderna, importante e com recursos como Comodoro Rivadavia onde encontraríamos técnicos à altura da tecnologia de uma BMW.

Não só o agente de alfândega cedeu graciosamente a meus argumentos, como me pediu que aguardasse enquanto ele me conseguia um par de endereços de oficinas bacaninhas que poderiam reparar a moto em Comodoro, a 500 km dali.

Encerrados os trâmites de alfândega, e após uma espera de uns 45 minutos, hora do almoço, fomos recebidos por três soldados que faziam seu serviço militar nesse canto remoto da Argentina.
Um deles, com traços morenos, típicos do norte do país, fez-me as perguntas de rotina:

De onde vem? Para onde vai? Quanto tempo fica na Argentina, etc. Estava bastante intrigado que três europeus (lembro a vocês que eu viajo com um passaporte espanhol) andassem de moto por aquelas bandas.

Tendo meu passaporte Espanhol na mão, sorriu e perguntou-me como é que um estrangeiro podia dominar tão bem o castelhano...

Foi o toque de humor que me rendeu o dia

Infelizmente, fui o único a perceber o absurdo da pergunta.

Ao finalizar os trâmites, já tínhamos nos transformado em amigos dos agentes de aduana e migração.

Pediram para fazer fotos de nossas motos e fizeram mil recomendações para que tivéssemos cuidado naquele trecho de 250 km de rípio até Rio Mayo.

Assim, depois de desejar a todos um Feliz Ano Novo, continuamos Janeiro adentro, em uma viagem de mais de quatro semanas que ainda renderia boas histórias.

Não cheguei a Ushuaia. Ela continua ali.

Um dia voltarei para fazer novamente essa rota, aproveitando para tornar a encontrar Juan Boteco e Camilo Camionete que seguramente se lembrarão de nós.


Essa passagem de ano, esse reveillon, e essa gente por sua singularidade ficarão sempre em nossas memórias.


Ricardo Lugris